segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Ana



Todos os dias ela percebia o olhar dele quando passava perto da esquina, em direção ao trabalho. Na verdade, ela só tinha notado seu interesse há uns 2 meses, na hora da saída, quando ele deixou a guarita pra dizer “boa noite”. Achou esquisito, porque ele saiu da guarita, deu a volta por trás e alcançou Ana Maria já do outro lado – lugar de difícil acesso.
A partir daí, começou a perceber coisas que até então nunca tinha notado: quando chegava à empresa ele “coincidentemente” estava perto da porta e a abria para ela, ou parava de conversar quando ela passava. Teve também aquela vez em que ele “segurou” a porta do elevador até que ela entrasse, dando um sorriso largo (embora ele mesmo não tivesse entrado).
Ana começou a achar que estava sendo paquerada.
A idéia de ser paquerada a deixou surpresa no início. Depois, feliz.
Sentiu-se confiante, como não se sentia há uns 20 anos.
Ana há muito tinha perdido sua própria identidade. Foi esposa dedicada, mãe dedicada, filha dedicada e funcionária dedicada. Ana foi tudo, exceto Ana.
Ana vivia para os outros, assim como havia se acostumado a viver para o ex-marido.
Mas agora alguém enxergava “Ana”.
Talvez outros já tivessem enxergado “Ana” sem que ela tivesse percebido. Mas agora, não somente “alguém” enxergava “Ana”. Ela própria se enxergava.
Começou a se olhar com um olhar diferente todas as manhãs. Parecia que nunca tinha realmente
se visto. Olhava seu próprio corpo no espelho, seus cabelos, seus olhos, e começou a se achar bonita.
O responsável por esse novo “olhar” sobre si mesma era Ricardo, chefe dos seguranças da empresa. Rapaz alto, cabelos claros, gentil, e sempre bem vestido em seu terno elegante.
A princípio, Ana pensou que Ricardo fosse assim gentil com todo mundo, mas logo viu que não. Ele era gentil com “ela”.
Ana se sentia mulher, interessante, e desejada.
Os olhares e sorrisos de Ricardo fizeram tão bem à Ana que até seu jeito de andar mudou. Era agora um andar elegante, confiante.
Era outra Ana.


Sua autoconfiança fazia com que muitos outros a olhassem quando passava. Ana tinha “atitude”, diziam as amigas quando queriam justificar tantos olhares dirigidos a ela.
Ana, que se redescobriu nos olhares de Ricardo, não se interessou por mais ninguém.
Ana era assim mesmo: sempre gostou de quem gostava dela primeiro. E era fiel.
Numa dessas manhãs em que o sol brilhava nas folhas ainda molhadas da forte chuva da noite, Ana vinha descendo a rua com seu andar confiante. Ela avistou Ricardo, parado no lugar de sempre, olhando em sua direção.
Ana sabia que Ricardo também já tinha percebido seu interesse.
Resolveu caminhar com mais “charme”, na esperança de Ricardo dissesse alguma outra coisa além dos bons dias e boas noites de sempre. Lembrou de como aquelas modelos andavam nas passarelas, com elegância e confiança, capturando a atenção de todos. Resolveu fazer o mesmo. Viu quando Ricardo comentou alguma coisa com o colega que estava ao lado e voltou a olhar para Ana, como que hipnotizado.
Ana, que antes era tímida e caminhava olhando para o chão, olhava agora para Ricardo. Fixamente. Audaciosamente.
Por isso, não viu o buraco.
Ana tropeçou no buraco e sentiu como se fosse caindo em câmera lenta. Seu pé virou, e o sapato voou de seu pé, rodopiando pelo ar, caiiiiiindo..... caiiiiindo.... giraaaaando... e caiiiiindo... A própria Ana ia despencaaaaando, tentando se segurar no ar, agitando os braços freneticamente, como se fosse uma ave em queda tentando se equilibrar no espaço.....até que desabou no meio fio. Perna pra um lado, outra perna pro outro, bolsa à meio metro de distância, e o sapato, só Deus sabia onde....
Ricardo, quando viu a cena, não sabia o que fazer (afinal, nunca tinha falado com ela). Correu em sua direção e ofereceu ajuda, preocupado.
Ana levantou, pegou o sapato, e o calçou. Em seguida, morta de vergonha, pegou a bolsa, deu um sorrisinho amarelo a Ricardo, dizendo:
- Obrigada, não foi nada.
- Tem certeza?
- Sim, tá tudo bem, foi só um escorregão...esses buracos! rsrs...
Andou em direção à empresa tentando manter a pose e disfarçar a dor medonha que sentia. Queria evaporar junto com as pocinhas de chuva da calçada.
Assim que Ana pisou na empresa, deixou a pose, elegância e atitude, e foi mancando e gemendo de dor em direção ao ambulatório.
A médica achou que era ruptura de ligamento, e enquanto colocava gelo no tornozelo roxo e inchadíssimo de Ana - que já nessa altura, esquecendo o restinho de “atitude” não gemia, mas urrava de dor – pediu à enfermeira que requisitasse uma cadeira de rodas e providenciasse um táxi para levá-la ao hospital mais próximo.
A enfermeira pediu o táxi à portaria e disse que tinha que estacionar dentro do prédio, no estacionamento privativo, porque levariam Ana até ele na cadeira de rodas.
Como a empresa restringia o acesso de carros estranhos às suas dependências, enviaram um segurança para acompanhar a remoção de Ana.
E foi assim que um espantado Ricardo apareceu, trazendo a cadeira de rodas para uma Ana estrupiada.

A dor era tanta que já não se importava com mais nada.
Tirou o sapato e deu pra ele segurar, pendurou-se em seu pescoço e foi saltando em um só pé até a cadeira de rodas, chorando de dor.
Então, enquanto a médica em meio à confusão dizia um “vai com Deus, Ana!”, Ricardo empurrava a cadeira falando baixinho (só pra Ana ouvir):
- Ana.....só assim pra eu descobrir o teu nome....


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