sexta-feira, 31 de outubro de 2008


O frio começou pelas costas por causa do vento gelado de fim-de-tarde. O píer continuava deserto. Eu olhava aqueles pássaros que de vez em quando faziam um vôo rasante na tentativa de pegar um peixe. Como era o nome deles? Nunca sabia ao certo.Gaivotas? Acho que eram gaivotas....sei lá..

Enquanto ele se aproximava, eu olhava pela janela. Nem vi quando parou perto da minha mesa, com o copo em uma mão e o prato em outra, sorrindo. Continuei com a cabeça apoiada na mão, cotovelo na mesa, olhando a paisagem lá fora, arrumando coragem pra voltar pro trabalho. Não agüentava mais aquelas reuniões. Não hoje.
- Oi. Vi que você tá sozinha. Eu também. Detesto comer sozinho – disse, com um sorriso muito branco. Posso sentar aqui com você?
Olhei para ele por uns cinco longos segundos, até entender o que dizia, tão absorta estava em meus pensamentos sobre aquela manhã. Pensei: “meu Deus, eu não quero conversar....afasta essa pessoa, desintegra”, e sorri para ele, um sorriso mentiroso, fraco e sem convicção.

Agora já alguns barcos retornavam, talvez por causa da promessa de chuva que o céu cinza escuro trazia. Eu não entendia nada de pescaria e nem gostava. Mas gostava do mar. Na verdade, só comecei a gostar depois que o conheci, porque nem nadar eu sei. “Não sabe nadar?” – ele perguntou rindo um dia.

Começou a falar enquanto comia. Disse que sentia falta da família em volta da mesa e saudades da praia em Floripa. Enquanto ele falava sem parar, eu continuava com o cotovelo na mesa e a cabeça apoiada na mão. Olhava as mãos dele, grandes. Os cabelos eram levemente despenteados. Os olhos quase sumiam com o sorriso largo. Vestia uma camiseta da Osklen. Todo ele lembrava vida tranqüila e praia. Ao contrário de mim, enfiada naquele terninho preto. Enquanto ele falava, eu não conseguia deixar de pensar no gerente da empresa, reunindo todos os funcionários naquela manhã prá avisar: - “estamos desativando a filial brasileira. Até o final do mês encerramos as atividades. Foi muito bom poder contar com vocês durante esse tempo...” a voz lacônica do gerente mostrava o discurso cuidadosamente ensaiado antes da reunião. Agora tinha que pensar como ia pagar as contas.
As empresas estavam demitindo e não havia contratações por causa da crise, era o que eu lia.

As redes já tinham sido recolhidas e os pescadores ido embora. O frio tinha aumentado. Vesti a jaqueta, mas o vento gelado entrava por todas as frestas de minha roupa. Há quanto tempo já tava ali? Não tinha noção. Duas horas? As ondas eram altas e o céu, cinza escuro esverdeado.

Ele não me deixou voltar para o escritório. Na verdade, eu tava pouco me lixando para o escritório. Não queria ficar até o final do mês. Ia acabar ficando, mas não queria. Não ia voltar pra lá hoje.
Ficamos ali conversando. Ou melhor, ele falando e eu ouvindo. Não estava animada, não queria falar. Não queria nada, nem levantar dali. Queria virar uma estátua e não precisar mais levantar, comer, procurar emprego, ir ao banheiro, nada. Acho que por isso fiquei lá, ouvindo e ouvindo ele falar entusiasmado sobre o que mais gostava de fazer: surf. De vez em quando escapava uma ou outra palavra como “gunseira” , e ele logo explicava do que se tratava. Era um vocabulário de surfista, que eu nunca tinha ouvido e nem me interessava. Só continuava ali porque levantar e andar seria pior. Queria permanecer estátua até o mundo se acabar no “Big Crunch” . Será que ele sabia o que era Big Crunch? Não, acho que não. Provavelmente só sabia o que era “Big rider” - surfista de ondas grandes - como ele me explicou. Nossos mundos eram tão diferentes! E o dele não me interessava nem um pouco.

Eu estava de pé no píer, tentando enxergar qualquer sinal dele, mas nada. Alguma coisa errada tinha acontecido. Ele nunca se atrasava. Na verdade, às vezes se atrasava sim. Quando estava surfando, esquecia do resto do mundo para viver no mundo só dele. Ele e o mar eram um. O mar era a casa dele, então.

Saímos do restaurante já bem tarde. Ele animado e eu me arrastando. Acho que ele não percebeu. Talvez achasse que eu era assim mesmo, estilo semimorta. Não sei o que fez ele se interessar por mim. Não sei mesmo. Ele parecia um modelo bronzeado para capa de revista de “surf wear” e eu, uma modelo amarelada para capa de revista “funcionária do mês”. Insistiu para sairmos à noite. Pensei: não tenho nada a perder. Já tinha perdido o emprego, e ele disse que pagava. Pelo menos eu não ia gastar - o que era ótimo - já que estava desempregada. É, ia economizar. Aquele pensamento me fez sorrir.

O resgate já estava procurando há meia hora. Não o encontravam. A chuva era forte e interromperam as buscas. Eu pedi para continuarem. Sabia que ele era forte, treinava muito. Provavelmente estava em alguma pequena ilha, sem conseguir voltar por causa da chuva e das ondas fortes.

A noite tinha um cheiro bom. Ou o cheiro bom vinha dele? Ele estava diferente agora. Parecia mais interessante. Ou será que EU tinha mudado desde à tarde? Talvez. Talvez já não estivesse preocupada com o emprego. Aquela porcaria. Tantos anos dando o sangue lá, trabalhando até tarde da noite, viagens, finais de semanas interrompidos. Gringos desgraçados. Não queria mais pensar neles. Que se danassem. Queria aproveitar o cheiro da noite e rir. Viver e rir. Rir muito.Como pude ter ficado tanto tempo vivendo aquela vida escura de terninhos pretos? Vestia agora bermudas brancas, bata verde e sandália baixa, roupa que combinava bem com o calor daquela noite. Ele ficou sem fala quando nos encontramos. Disse que eu estava linda.... Hum....me olhei no reflexo da vitrine de uma loja. Acreditei no elogio que parecia sincero. Afinal, era bom estar com ele. Ele era bonito, era interessante, era alegre.

A manhã chegou e eu estava no píer. Parada. Esperando. Ele viria. Ele sempre veio. Nunca iria me deixar lá, sozinha.

Durante o jantar ele contou que há 1 mês me via almoçando sozinha. Às vezes lendo um livro e comendo. Às vezes com o notebook, e comendo. Sempre sozinha. Disse que já conhecia cada expressão minha, cada hábito. Fiquei espantada. Nunca tinha reparado nele. Disse que criou coragem para conversar quando viu meu jeito triste e pensativo. Pela primeira vez eu não tinha tocado na comida na hora do almoço.
Ele era maravilhoso. Passamos a nos encontrar todos os dias e eu o acompanhava quando ia surfar. Passei a amar o cheiro do mar. Era o cheiro dele.

O resgate continuou as buscas por todo o dia. Trouxeram um sanduíche mas eu não quis comer. Meu estômago estava embrulhado. Sentia vontade de vomitar e tremia. Ele estava bem. Eu sabia. Eu sentia.

Na primavera ele trouxe um anel. Anel de noivado. Fiquei paralisada, espantada, e feliz. Ele colocou o anel no meu dedo e disse: casa comigo. Não era uma pergunta. Era um pedido meigo, com voz carinhosa. Não respondi. Dei um beijo em sua boca e ficamos abraçados. Parecia que eu o conhecia desde sempre. Fazia 6 meses, mas parecia uma vida.

A noite chegou novamente no píer e eu estava ainda com a mesma roupa. Não queria sair de lá. Não acreditava que ele não voltaria. Ele voltaria. Disse que casaria comigo. O anel que ele comprou estava em meu dedo. Como poderia ele não voltar?

Perguntei a ele que presente gostaria de ganhar. Afinal, tinha me dado um anel. Ele sorriu, o sorriso branco no rosto queimado de sol disse: você. Eu quero você pra sempre.

O resgate insistiu para que eu fosse para casa, mas eu não quis sair. Os pescadores experientes diziam o que o pessoal do resgate não queria me dizer: com o tempo que fez, impossível que ele voltasse vivo. Não havia chance.

Olhei o mar que ele amava. O mar que era a casa dele. Lembrei de suas palavras: quero você pra sempre.

Tirei o anel do dedo e joguei no mar. Saí andando, de volta à vida escura.

3 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Escreve um romance...

Luz Noturna disse...

obrigada...
;)